I.
Foi uma mulher que me salvou do Nirvana.
Farto de civilização e incapaz de integrar-me na vida previsível da cidade, fugi para o campo, por uns tempos, até chegar a sentir o “Helas!” de Mallarmé: “La chair est triste, helas! et j'ai lu tous les livres”.
Eu também já tinha lido todos os livros, embora a minha carne estivesse, ai de mim!, antes adormecida do que triste. Cheguei a ter saudades da intimidade do metropolitano e, uma tarde, quando regressava de uma trôpega peregrinação pelas matas vizinhas, ocorreu-me esta intuição fulgurante: estamos condenados a imaginar e só realizamos para imaginar outra coisa.
Não está bem expresso. Tornar real seja o que for é perdê-lo. Só possuímos o que imaginamos.
Era, agora, muito claro por que o campo me parecia tão imprescíndivel, imaginado da cidade, feita de ruas cheias e casas vazias ou vice-versa, conforme a hora do dia. Mas, se realizo o meu desejo e parto para o campo – e estou, agora, realmente, a estalar gravetos debaixo dos meus pés – dou por mim a imaginar-me na cidade e nem sequer reparo na expressão pensativa do bode parado à minha porta.
Ah! Então é isso o Nirvana! O absoluto esvaziamento de todo o imaginário, porque, sem o exercício dessa faculdade, não há desejo e, logo, não há realização. É a extirpação da cauda do Oroborus. A paz, enfim.
No dia seguinte, manhã cedo, aproveitei a passagem de um rebanho à frente da minha casa e concentrei-me no badalar dos seus chocalhos, para expulsar da minha mente todas as ideias, recordações, projectos, receios e esperanças. Só ficou o chocalhar. Depois, quando o rebanho se perdeu ao longe, ficou o silêncio.
De olhos fechados, costas apoiadas à grande bilha de azeitonas, para que a energia pudesse circular livremente, por quanto tempo estive sem desejar..?
E, então, a mão de ferro pendurada à porta esmurrou duas vezes a madeira.
quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
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2 comentários:
Adão
De repente dou comigo a cantarolar o "Estou Além" do António Variações:
"Não consigo dominar
Este estado de ansiedade
A pressa de chegar
P’ra não chegar tarde
Não sei de que é que eu fujo
Será desta solidão
Mas porque é que eu recuso
Quem quer dar-me a mão
Vou continuar a procurar a quem eu me quero dar
Porque até aqui eu só
Quero quem
Quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi
Esta insatisfação
Não consigo compreender
Sempre esta sensação
Que estou a perder
Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P’ra outro lugar
Vou continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar
Porque até aqui eu só
Estou bem
Aonde não estou
Porque eu só estou bem
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
.................."
A insatisfação é o nosso motor para novas descobertas, para o sair de nós próprios, das nossas letargias e rotinas, continuando a busca do mais além, do que está sempre para além do já alcançado. Depois o desânimo, ainda que passageiro, por já nada nos surpreender, por antecipadamente vivermos e prevermos os factos.
Dentro de nós instala-se um mal estar, uma estranha melancolia, uma quase raiva surda, um estar sem estar e... emudecemos...até que "a pesada mão de ferro pendurada à porta esmurre duas vezesa madeira"...e novo rasgo nos fecunde a imaginação...
Amei o ínicio da história. Aguardo o desenrolar dos acontecimentos e mil perguntam dominam a minha curiosidade (como por exemplo: quem o salva do nirvana????)
Surpreende-me... como tão bem sabes fazê-lo.
Um beijinho.
EStou além...perfeito!
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