quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

No teu aniversário



Sobes a pulso cada degrau da tua escada.
Segues a direção que escolheste,
o rumo que a bem ou a mal traçaste,
a página que escreveste e viraste!
Indiferente à dor, à lágrima espalhada,
os frutos silvestres que colheste
tingem-te a boca do roxo que semeaste,
nos arlequinescos carnavais que comemoraste.
Vejo-te ainda, menino na caminhada,
nos calções caqui que não rompeste
e nas botas de couro que nunca estreaste,
distante desse futuro que não planeaste.
Vejo-te de novo, agora, quase no final da estrada
nos sinais do quanto envelheceste,
sulcos profundos que no rosto guardaste,
marcas que na tua alma aprisionaste.
E cada ano conquistado é uma vida adiada
nos silêncios que criaste e não rompeste,
nas tantas mulheres que tiveste e não amaste,
nos sonhos que quiseste e não sonhaste.
Cada filho, cada sombra, cada cilada,
que no peito, pássaro ferido, acolheste
não te exime da ilha em que te transformaste,
do mar tenebroso de que te rodeaste.
Criando a máscara mais adequada,
corrimão a que te agarras e mereceste,
habitas o herói nu que personificaste
e escondes-te no negro quadro que pintaste.
Encostas, agora, o rosto cansado à almofada
recordando o filme do tanto que viveste.
No presente aniversário completaste
outro xadrez do jogo solitário que jogaste…


Isabel Branco


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

FÉMINA



O ínfimo espaço que preencho no universo,
a força uterina que me move desde o berço
na inevitável rotação dos dias
e na órbita e translação do pensamento,
veste a suavidade das cambraias,
a ternura, a emoção, o descobrir, o ser,
os cetins, as sedas, a luxúria e o prazer
entre quentes véus e lantejoulas frias.
As negras rendas nas bainhas das mil saias,
rasgam-se na voracidade das horas,
no drama quimico das partículas e das moléculas
que me trouxe, no mistério umbilical de existir,
ao propósito indefinido da matéria
e na alquimia da mente, do consciente e do inconsciente,
me usa e consome e me espalhará pelos séculos
em pó e cinzas gravitacionais...
Reparte-se em centelhas
o macio vidro das meias,
rios e mares os cabelos penteiam
e sombras sulcam rugas nos espelhos do tempo...
Na sofrega vermelhidão das magnólias desabrochadas,
ao despertar de cada manhã,
entre os lençóis de linho bordados
com cheiros de alfazema e romã,
esconde-se um corpo alvo e indolente
na patética vontade do sangue
e no bater compassado dum coração
que se espreguiça, se levanta de coragem
e, de saltos altos, ruma ao desconhecido
humana e feminamente vestido!...

Isabel Branco

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Apagão




Faltou a luz...Apagão...
Acendo uma vela!
Que fazer?
Senão ver,
observar
o bruxelear,
a chama que vem dela!
É geral...e parece que para durar.
Toda a rua, todo o bairro
mergulha em escuridão.
Não há computador,
nem televisão...
Nada a fazer,
senão esperar!
Esperar!...
Ah! Mas esta espera desespera!
Nada a fazer ! Nada ver
senão a luz frouxa duma vela!
Então...solta-se  uma ideia...
e outra...e mais outra...
Afinal, há que fazer...
deixo a tinta correr
da caneta que tenho na mão
e o poema começa a acontecer!
Tempos dificeis, conturbados,
estes em que a imaginação
deixou de se sentir...de fluir...
à luz tímida duma vela.
Está frio...o corpo esfria...gela...
Nenhum dos meus ainda regressou
e sozinha aqui estou...
sem aquecedor,
sem fogão,
sem afazer ou distração.
Encosto o rosto à vidraça
e da minha janela
vejo vultos de gente que passa...
Sombras em desenfreada correria
na volta ao lar, ao final doutro dia.
Ao longe, na auto-estrada,
amontoam-se em procissão
centenas de pequenas luzes
e tantos...tantos carros na confusão.
Mais além...uma pequena povoação...
E luz...intensa e amarela
iluminando, colorindo
uma, outra casa, ou quem vive nela.
Por aqui...continua o apagão!
Lá fora, na rua...um ou outro clarão!
Escrevo....e, à cautela,
vou em busca doutra vela
que esta, já quase extinta,
mal me deixa ver a tinta
e a azulácea determinação
que cabe dentro dela.
E a luz que não volta!
E o tempo que passa!
 E a gente, num cobertor envolta,
pensa na vida e na desgraça...
A falta que faz a eletricidade!
Como tudo gira e se move,
como vibra e pulsa com ela,
qualquer aldeia, vila ou cidade!
As horas...tic-tac...tac-tic...vão passando.
E, de repente, rasgando o silêncio,
 um toque exasperado
do telemóvel que me reclama.
É a minha filha, a mais nova que me chama,
que me pede auxílio
perto do estacionado elevador,
sentindo-se por fantasmas perseguida
no bréu assustador.
Abro a porta e vou até ao corredor
e, à luz mortiça duma vela,
é quente e doce o nosso abraço acolhedor
nesta noite fria, escura e singela!
Lá fora... continua o apagão!
Porém, aqui, agora...
vejo e basta-me
a luz nos olhos dela.

Isabel Branco

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Sei-nos


Sei da apetecível loucura,
da incontornável languidez
que me devora e descura,
me inebria e colore a palidez.


Sei dos teus olhos a chama
reacesa no meu pensamento,
na convicção de quem ama
nesta saudade que enfrento.


Sei, da pele, as sensações,
as narcisistas tempestades,
o espraiar das emoções
e o trovejar das vontades.


Sei das noites de insónias,
das lágrimas e desencontro,
do abandono das cerimónias,
das nuvens onde te encontro.


Sei da saliva engolida
nas alvas páginas que escrevo,
da desordem consentida
do que, ao lembrar-te, me atrevo.


Sei-te de cor e salteado
entre a luz e a escuridão…
a cada beijo molhado
que me roubas do coração.


Sei-te inteiro, uno, exato
a cada músculo e pormenor.
Sei-nos derradeiros no ato,
plenos de tinta e esplendor!


Sei-nos ostras abraçadas
pérolas dum vasto oceano,
duas faluas ancoradas
ao peito do nosso desengano.


Sei-nos lírios adormecidos,
sombras, retratos de ausência…
Dois corpos reprimidos
na hesitação e na demência.


Sei-nos chuva de infinito
na lucidez do momento,
na invernia do conflito,
mar do nosso contentamento.


Sei-nos, alma e sangue desnudos,
cúmplices na poesia do pecado,
dois febris gritos mudos
do nosso estar desassossegado!




Isabel Branco


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Corja Assassina



Atravessando desertos de solidão,
bebendo dos espinhos o néctar da vida...
De cá para lá, de lá para cá...
Corpos sebentos se arrastam
na areia limite do tempo!
Perseguidos...
Coagidos...
Humilhados...
Inumanamente massacrados
por bandos de energúmenas
consciências negras, sem norte, sem sul,
mas de ideias fixas, obtusas, fechadas
no círculo da corja assassina.
Chacais sedentos de sangue e de pranto
esfaimados do poder e da glória...
Lixo...escumalha da sociedade...
Óh! Míseros...Óh! Estupidez...Óh! Indignidade...
Que bem vos assentam as feéricas cadeiras
da vossa insustentável inutilidade!


Isabel Branco