sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Poema à Boca Fechada; Na Ilha por Vezes Habitada; Protopoema - José Saramago


61º Programa - José Saramago - DIZER POESIA by Isabel Branco2

Autodidata, natural de Azinhaga na Golegã e nascido a 16 de Novembro de 1922, José de Sousa Saramago foi jornalista, argumentista, ensaísta, dramaturgo e um brilhante e polémico escritor e poeta português de cariz universal. Nobel da literatura em 1998 ganhou também o Prémio Camões em 95, sendo a sua obra conhecida pelo estilo oral em que a riqueza e vivacidade da comunicação são mais importantes do que a correção da linguagem escrita. Num estilo próprio e único na literatura contemporânea, a sua escrita repensa os acontecimentos, reinventa as figuras históricas e os lugares, criando uma nova realidade histórica, evidenciando também em determinada altura a sua ideologia marxista. Apesar de pouco se falar de Saramago enquanto poeta e pensador, a sua profunda introspecção, lucidez e sentido critico, para além do seu lirismo e originalidade destacaram-no também nessa área, manifestando-se sobretudo através de três formas: a ode, a elegia e o poema de amor. Como ele próprio disse: “Uma pitada de poesia é suficiente para perfumar um século inteiro.” Para além disso, todos os seus romances são uma imensa e peculiar prosa poética. Vítima de leucemia crónica, Saramago faleceu a 18 de Junho de 2010, aos 87 anos de idade, na sua casa em Lanzarote onde residia com a mulher Pilar del Rio.

POEMA À BOCA FECHADA

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago

NA ILHA POR VEZES HABITADA


Na ilha por vezes habitada do que somos,
há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e aperta-mo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o 
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.


José Saramago

PROTOPOEMA


Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de 
repente não sei se as águas nascem de mim,
ou para mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo
em ramo acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu 
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas 
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que 
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, 
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.


José Saramago

DESPUDOR


Trago na retina
o baú dos segredos
e espelho rosas em águas calmas.
Habito entre as almas
no tom matiz dos medos
e bebo o fascínio
do néctar que escorre
colhido no exílio dos penedos.
Seguro uma caneta de ponta fina
entre a cútis dos dedos,
cúmplice atrevida
das horas silenciosas
e danço nua, na penumbra,
num esvoaçar de borboleta,
despenteada,
pelos olhos da noite espreitada.
Responde-me o eco
que pelo absoluto corre
como fantasma que da lápide se ergue
e, sou, de novo, menina
pela primeira vez enamorada.
Num esvoaçar de pombas,
 soltam-se as palmas
dum sol de oiro em declínio
e a lua sem pudor
espreita maravilhada
e vem, mansamente, falar-me de amor.


Isabel Branco


DIZER POESIA


61º Programa: José Saramago - Poema à boca fechada; Na ilha por vezes habitada; Protopoema (e o Meu - Despudor) 


http://tv.rtp.pt/multimedia/progAudio.php?prog=3273


Transmitido na RDP Internacional a 25 de novembro de 2011.


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