domingo, 20 de novembro de 2011

Aforismo; Karingana ua Karingana; Quero ser tambor - José Craveirinha (Moçambique)



60º Programa - José Craveirinha - DIZER POESIA by Isabel Branco2


AFORISMO


Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.
Estávamos iguais
com duas diferenças:
Não era interrogada
e, por descuido, podiam pisa-la.
Mas aos dois intencionalmente
podiam por-nos de rastos
mas não podiam

ajoelhar-nos.

Mulato, filho de pai algarvio, José Craveirinha nasceu em Moçambique, na capital Lourenço Marques, atual Maputo, a 28 de Maio de 1922, e faleceu a 6 de Fevereiro de 2003, na África do Sul.
Autodidata, desempenhou diversas actividades. Foi funcionário da Imprensa Nacional de Lourenço Marques, jornalista, atleta, futebolista, cronista desportivo, colaborando também em diversas publicações periódicas.
Foi preso pela PIDE, mantendo-se na prisão durante 5 anos. Posteriormente após a independência de Moçambique foi membro da Frelimo e presidiu à Associação Africana.

Entre outros prémios foi também o 1º autor africano a receber, em 1991, o Prémio Camões. Craveirinha é um dos mais reconhecidos poetas da língua portuguesa e um dos maiores escritores africanos. Refletindo algumas influências dos surrealistas, representa uma natureza sofrida, resistente, encarna as transformações de Moçambique nas últimas quatro décadas, mesclando na sua obra os conflitos da sua época e os tormentos de seu povo.




KARINGANA UA KARINGANA (Fórmula clássica de iniciar um conto e que possui o mesmo significado de “Era uma vez”)


Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
— Karingana ua Karingana —
é que faz o poeta sentir-se
gente.

E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
nem em plena vida se transforma
a visão do que parece impossível
em sonho do que vai ser.

— Karingana!

QUERO SER TAMBOR


Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos. 

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero. 

Nem nada! 

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra. 

Eu! 

Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida. 

Ó velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia. 

Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque! 

Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor! 


José Craveirinha

DE REMOS PERDIDOS

De remos perdidos
singro o meu bote
no mar da incerteza.
Ganho asas de condor
nas velas brancas
que na imaginação desfraldo.
Navego um navio alado
rumo à ilha desconhecida
que entre brumas, ao longe, avisto.

Teimosa, persisto
entre os bancos de sargaços
em que me enredo.
Nem o fascínio dos corais,
nem o brilho das pérolas
de a alcançar me impede.
Escudo-me num sol poente
de azuis e exóticas madrepérolas
e aporto ao cais das longas esperas.

Isabel Branco





DIZER POESIA


60º Programa: José Craveirinha - Aforismo; Karingana ua Karingana; Quero ser tambor (e o Meu - De remos perdidos) 


http://tv.rtp.pt/multimedia/progAudio.php?prog=3273


Transmitido na RDP Internacional a 18 de novembro de 2011.


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